domingo, 26 de setembro de 2010

"os que tinham sido" e "os que forem"

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

A interpretação dos textos não segue os mesmos procedimentos em todos os campos. Os papers que tratam de temas das ciências ditas da natureza são univocamente interpretados pelos praticantes de cada disciplina. Isso não ocorre porque as palavras que eles empregam sejam unívocas nas diversas línguas, mas porque são interpretadas da mesma forma por todos os praticantes. "Reação" e "análise", por exemplo, são palavras ambíguas. Mas nenhum químico tem dúvidas sobre como devem ser interpretadas num artigo ou manual. Aliás, "reação" não tem o mesmo sentido em química e em física. E ambos os sentidos são diferentes do que tem a palavra "descrevendo" o comportamento de algum zagueiro ou atacante.

A interpretação de textos literários e religiosos segue critérios completamente diferentes. Sobre muitos deles, os especialistas se debruçam há séculos e, quanto mais esses textos são interpretados, mais opacos eles se tornam. Quem sabe o que quer dizer "tinha uma pedra no meio do caminho" ou "bem aventurados os pobres de espírito"?

Os textos jurídicos podem são (sic) interpretados de maneira diferente por juízes diferentes, e quando as questões chegam aos tribunais superiores, a interpretação considerada correta depende de um critério que, em outros campos, seria risível: a maioria do tribunal.

Portanto, não se trata de uma questão de gramática.

Digo isso para introduzir a questão da lei da ficha limpa ou suja, que, parece, vai ser objeto de muitas discussões. E, como nos outros casos, vai ter sua interpretação validada não necessariamente por uma teoria da leitura, mas pela maioria de um tribunal em uma sessão específica, e seguindo diversos critérios, porque juízes podem chegar à mesma conclusão por caminhos diferentes.

A opinião de um juiz até pode mudar no ano seguinte. Ou ele poderá defender outra interpretação se, em vez de juiz, vier a ser advogado de algum político acusado.

A mídia falou basicamente de uma emenda aprovada no senado, que mudou o tempo verbal. O texto passou de "os que tenham sido condenados" para "os que forem condenados". Haveria basicamente uma questão a ser decidida pelos tribunais: se a lei vale retroativamente, isto é, para condenados antes de ela vigorar, ou se só se aplica aos condenados no futuro.

A maior parte das pessoas que opinaram interpreta o texto como se valesse apenas no futuro. Daí as lamentações em relação à emenda Dorneles, da qual até se disse que se destinava a beneficiar Paulo Maluf.
Primeira observação: a mudança não foi só de tempo verbal, como todos disseram. Mudou também o modo verbal. Ou seja, a nova redação não só muda o verbo do passado para o futuro, mas também muda o modo indicativo para o subjuntivo.

A questão é, portanto, o que significa a expressão "os que forem condenados". De fato, essa expressão designa um grupo de pessoas, os condenados. A questão é, repito, todos os condenados ou somente o que vierem a ser condenados.

Não sou especialista em tempos e modos verbais (um verdadeiro lodaçal...), mas proponho que os leitores considerem situações como as seguintes:

a) "podem ser candidatos a presidente da Igreja os que forem batizados" significa que basta ser batizado, não importa quando o batismo ocorreu, para que alguém possa ser candidato ao posto; ou não?

b) "podem ser candidatos a juiz os que forem formados em direito" implica que basta ser formado em direito, não importa desde quando, para poder candidatar-se a juiz; ou não?

Assim, "os que forem condenados" não se refere apenas aos que o forem depois de promulgada a lei, mas a todos que couberem na categoria, porque "os que forem condenados" refere-se a todos os indivíduos (a cada um deles) aos quais se aplica o predicado "condenado".

Para que a nova redação exclua os já condenados, ela teria que ser "os que vierem a ser condenados". "Os que forem condenados", a meu ver, é expressão que se aplica aos condenados de todos os tempos.

Mas as coisas podem se complicar se considerarmos exemplos como "serão suspensos todos os que forem punidos com cartão amarelo". Talvez o segredo esteja no verbo (condenar, suspender, formar, batizar etc.). O efeito de sentido é duradouro ou passageiro? Uma vez batizado, sempre batizado. Mas quem é suspenso só o é por X partidas.

Disse que esse tema é um lodaçal. Em relação aos julgamentos concretos, cada um torcerá por sua teoria. Pelo menos, saberemos qual é a dos juízes.


Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.